Cinquenta anos depois…

02 abril, 2014

imagem do projeto 100 vezes Cláudia, do thinkolga.com

Era o dia 16 de março de 2014. O dia em que Cláudia Silva Ferreira – 38 anos, negra, mulher, mãe de quatro filhos, responsável por quatro sobrinhos, moradora do Morro da Congonha, no subúrbio bafejante do Rio de Janeiro – foi baleada por policiais militares que a colocaram no porta-malas de uma viatura e a transportaram até o Hospital Carlos Chagas, onde chegou sem vida. No meio do caminho, o porta-malas se abriu. O corpo de Cláudia foi arrastado por aproximadamente 350 metros até que os policiais percebessem, parassem e colocassem o corpo de Cláudia, uma vez mais, dentro do porta-malas da viatura.
Dez dias depois, ouvimos falar muito pouco de Cláudia, embora tenhamos ouvido falar muito de uma certa “arrastada por carro da PM”. A mesma mídia corporativa que demorou duas semanas para saber quem era Amarildo – foi preciso que as redes sociais e as ruas o dissessem incansavelmente – tenta, ainda hoje, apagar o caso de Cláudia negando-lhe até mesmo o próprio nome.
A resposta institucional ao assassinato de Cláudia pela Polícia Militar do Rio foi, em poucos dias, do protocolar “excessos serão apurados e punidos” a um café da manhã oferecido pelo governador Sérgio Cabral no Palácio da Guanabara aos familiares enlutados. Oportunidade em que o governador externou a esperança vazia de que os culpados fossem expulsos da PM. Poucos dias depois do assassinato de Cláudia – mulher, negra, mãe de quatro filhos, moradora do Morro da Congonha – o governador Sérgio Cabral, sob a autoridade estatística de um best-seller americano, vai a público defender a legalização do aborto como medida para redução da criminalidade no Rio de Janeiro:
São duas questões que têm a ver com violência: uma é a questão das drogas que é mais internacional. O Brasil deve contribuir. A outra, é um tema que, infelizmente, não se tem coragem de discutir. É o aborto. A questão da interrupção da gravidez tem tudo a ver com a violência pública. Quem diz isso não sou eu, são os autores do livro Freakonomics (Steven Levitt e Stephen J. Dubner). Eles mostram que a redução da violência nos EUA na década de 90 está intrinsecamente ligada à legalização do aborto em 1975 pela suprema corte americana. Porque uma filha da classe média se quiser interromper a gravidez tem dinheiro e estrutura familiar, todo mundo sabe onde fica. Não sei por que não é fechado. Leva na Barra da Tijuca, não sei onde. Agora, a filha do favelado vai levar para onde, se o Miguel Couto não atende? Se o Rocha Faria não atende? Aí, tenta desesperadamente uma interrupção, o que provoca situação gravíssima. Sou favorável ao direito da mulher de interromper uma gravidez indesejada. Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só”.3
Sob a absolutamente necessária conversão da discussão do tema “aborto” de seu patamar moral e religioso a tópico de descriminalização e política de saúde pública que permita a interrupção de gravidez como mera decorrência do direito da mulher ao próprio corpo, o que o discurso humanitário de Cabral dissimula é como o Estado compreende a vida do negro e do pobre como vidas essencialmente matáveis. Como o direito da mulher a uma interrupção de gravidez segura pode ser aparelhada pelo Estado como política de segurança pública. Na medida em que as mães da Rocinha são equiparadas a “uma fábrica de produzir marginal”, a legalização cabralina do aborto equivale à execução pré-natal que seus policiais praticam sistematicamente nos subúrbios e nas favelas do Rio contra aqueles que só poderão ser os “ex-futuros pais” dessas crianças. Cabral o afirmou, é bom lembrar, na mesma semana em que sua polícia assassinava e arrastava o corpo de uma mulher, negra, pobre, moradora do morro da Congonha, mãe de quatro filhos, cuidadora de outros quatro, durante uma operação de repressão ao narcotráfico. E ela se chamava Cláudia Silva Ferreira.
Os três policiais militares envolvidos nesse “lastimável incidente” que foram a “bala perdida” que vitimou Cláudia e, mais tarde, o “socorro” da vítima estão envolvidos em 62 “autos de resistência” em operações em favelas; todas visando ao combate ao narcotráfico. Em 72% deles, as vítimas, socorridas pelos policiais, morreram. Com isso, os três PMs que assassinaram Cláudia somam 69 mortos. Cláudia foi a septuagésima. Inicialmente presos, os três policiais tiveram a prisão relaxada pela autoridade policial, a pedido do Ministério Público do Estado do Rio, que se baseou em laudo pericial que atesta que Cláudia não morreu em virtude de ter sido arrastada pela viatura da PMERJ, mas por não ter resistido aos ferimentos à bala.
Investigações posteriores revelaram que a tropa a que pertencem os três policiais envolvidos na morte de Cláudia (o 9º BPM) não apenas acumula histórico de violência policial, como foi um dos protagonistas da chacina de Vigário Geral, em 1993. Em 23 de fevereiro de 2014, um jovem, em Campinho, foi morto a coronhadas por policiais do mesmo grupamento. No início de fevereiro, outros dois jovens foram baleados na comunidadeBateau-Mouche.
Mas o que tudo isso tem a ver com os 50 anos do golpe empresarial-militar no Brasil? O que vincula Cláudia a um passado já quinquagenário? Gostaria de tentar responder a essa pergunta – pois pode parecer extemporâneo falar de Cláudia e não de eventos históricos – em diálogo com aquilo que poderíamos chamar de transição democrática inconclusa, no Brasil. Só assim, poderemos compreender as continuidades que não cessam de ligar as duas pontas dessas narrativas: um passado que jamais deixou de presentificar-se. Eis, talvez, o sentido oculto na ambiguidade de falar de “50 anos de golpe no Brasil”. Ele poderia muito bem se chamar: “1964, o ano que não terminou. Pelo menos, não ainda”. Por isso, narrar o passado, cartografar a memória, para nós – rapazes com seus vinte ou trinta anos –, é mais do que apenas diagnosticar os legados autoritários de um período de exceção: é confrontar, pela via do passado, da co-memoração (do latim, co-memorare, rememorar-junto) o que nosso presente tem de intolerável.
*
Podemos constatar sem dificuldades a atualidade da pergunta proposta por Vladimir Safatle e Edson Teles (2010) – O que resta da ditadura? –, e do grito efectista e ao mesmo tempo parresiasta do psicanalista Tales Ab’Saber, que respondera à questão afirmando que da ditadura restava tudo, exceto a ditadura; ou do gesto de Paulo Eduardo Arantes (2010, p. 205) que não hesitou em chamar 1964 de “ano que não terminou”. Essas foram algumas das últimas vagas genealógicas desencadeadas pelo projetoDesarquivando a ditadura, de Cecília MacDowell Santos, Edson Teles e Janaína de Almeida Teles (2009, p. 13-14), que se fundava na cartografia do legado autoritário e na contribuição crítica à constituição da memória e da justiça no Brasil contemporâneo. Esses gestos, verdadeiramente muito próximos daquele arendtiano, que se perguntava sobre “o que estamos fazendo de nós mesmos” (ARENDT, 2010, p. 06), permite entrever a dupla pertença das instituições ao passado e ao futuro no interior de uma interrogação que não pode ocupar outro limiar senão o da mais absoluta atualidade.
Toda pesquisa genealógica não implica fazer do presente, e dos instrumentos democráticos que passam a exigir consolidação, especialmente após 1988, tabula rasa do passado, de modo a lançar o presente e o passado a uma completa indiferença. Tais cartografias da memória assumem a tarefa de tornar visíveis as formas presentes por meio das quais um legado antidemocrático emerge, reproduz-se e se dissimula cotidianamente. A presença de um legado autoritário sem a sua representação – senão factícia e, não raro, violenta – constitui o índice de incompletude do processo de transição democrática atestado entre nós já há alguns decênios (PINHEIRO, 2002, p. 240-242; ABRÃO e TORELLY, 2011, p. 241).
Evitando toda negatividade da incompletude, Glenda Mezzaroba (2003, p. 10) prefere compreender a anistia brasileira como um processo político de longa duração que, iniciado em 1979, não cessou de ser redefinido e ampliado desde então. Se tomarmos, como Mezzaroba, a transição como uma tarefa positiva, torna-se preciso estabelecer algumas linhas gerais de ação em que a dinâmica da mutação institucional, no Brasil contemporâneo, deve estar implicada, sem prescindir de um olhar retrospectivo, capaz de identificar algumas manifestações de espectro autoritário.
Comparando o Brasil de antes e de depois da transição, Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling (2007, p. 437) observam que “O Brasil experienciou um acentuado declínio em suas práticas relacionadas a direitos humanos, em comparação com qualquer outro país latino-americano em transição”4. Sua análise sugere que a experiência brasileira possa ser considerada exemplar de que a transição democrática é causa necessária, mas não suficiente, de uma melhora nas práticas estatais e sociais relacionadas a direitos humanos.
Além de enfatizar a denegação dos direitos à memória e à verdade, o Informe 2010 da Anistia Internacional (2010, p. 113-116) apontou que, apesar da edição de um novo Plano Nacional de Direitos Humanos, datado de 2009, e da realização de algumas reformas limitadas na área de segurança pública, o policiamento ostensivo continuava a empregar força excessiva, a praticar execuções extrajudiciais e a tortura, mantendo-se impunes seus perpetradores. De acordo com dados do Informe, o Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, registrou mais de dez mil mortes violentas entre os anos de 1998 e 2009, por suposta resistência policial. Entre os anos de 2010 e 2013, também se relatou a atuação contínua de grupos parapoliciais e de extermínio no Brasil (ANISTIA INTERNACIONAL, 2010, p. 115; 2011, p. 112; 2012, p. 110-111; e 2013, p. 52-53).
Uma constante nos informes anuais produzidos pela Anistia Internacional nos últimos anos (2010-2013) é o relato do envolvimento de diversos agentes de execução da lei com o crime organizado e grupos de extermínio. Por mais de uma vez, os representantes da Anistia Internacional consignaram que o sistema prisional brasileiro caracterizava-se pelo uso constante da tortura, bem como verificou condições cruéis, desumanas e degradantes na maior parte dos estabelecimentos de internamento provisórios e permanentes visitados (ANISTIA INTERNACIONAL, 2010, p. 115; 2011, p. 114; 2012, p. 111; e 2013, p. 53).
À conclusão semelhante chegou o Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da Organização das Nações Unidas, publicado em Fevereiro de 2012. Tendo visitado instituições para pessoas em situação de privação de liberdade – como instituições policiais de detenção provisória, instituições prisionais, instituições para Crianças e Adolescentes, bem como centros de tratamento médico para dependentes químicos – nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, verificou-se que muitas das recomendações feitas ao Estado Brasileiro em 2012 eram objeto de reiteração pela Subcomissão. Isto é, a visita do órgão desvelou a omissão sistemática do Estado em relação à tutela de direitos humanos e fundamentais de pessoas em situação de privação de liberdade.
Ainda no campo das relações entre Estado e cidadão – com ênfase no tratamento governamental dispensado a grupos vulneráveis, politicamente minoritários e socialmente marginalizados –, os informes editados entre 2010 e 2013 pela Anistia Internacionalreportaram contínuas ameaças e violações de direitos de povos indígenas, trabalhadores sem terras e pequenas comunidades rurais, assim como ativistas sociais e defensores de direitos humanos relataram ameaças, ataques e acusações politicamente motivados.5 Demais direitos sociais como o direito à moradia, direitos sexuais e reprodutivos, direitos das mulheres etc, foram consistente objeto de preocupação nos Informes do período, que relataram, ainda, a ameaça que obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) representavam a direitos de comunidades locais.
Projetos de construção de represas, de estradas e de portos não raro foram levados a cabo por meio de remoções forçadas de comunidades locais (ANISTIA INTERNACIONAL, 2010, p. 116; ainda, 2013, p. 54). Exemplar, a esse respeito, o caso da comunidade “Aldeia Maracanã”. Indígenas ocupavam desde 2006 o prédio histórico do Museu do Índio, localizado no entorno do estádio do Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro, e foram removidos, após deferimento de pedido de reintegração de posse, pelo Batalhão de Operações Especiais e pelo Batalhão de Choque da Política Militar do Estado do Rio de Janeiro, a fim de viabilizar a realização de obras para a Copa do Mundo de 2014; ou, ainda, o caso da construção da Usina de Belo Monte, cujos canteiros foram ocupados por povos indígenas de diversas etnias a fim de impedir a construção da Hidrelétrica, iniciada sem consulta prévia aos povos tradicionais da região. Trata-se de casos emblemáticos de uma tensão crescente entre projetos governamentais de crescimento econômico e suas consequências imediatamente humanas e ambientais.
Em atenção ao fato de que o Brasil é um dos únicos países do mundo a contar com um aparato policial militarmente estruturado, um Grupo de Trabalho no âmbito do Exame Periódico Universal, vinculado ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, recomendou ao governo brasileiro a desmilitarização de sua polícia ostensiva (EFE, 2012). Jorge Zaverucha (2010, p. 56) retraçou as origens do exercício do policiamento ostensivo da Polícia Militar – que permaneceu com seus efetivos aquartelados até 1969, quando, no ápice da repressão política, passaram a ser o principal fiador da ordem pública. Zaverucha não deixou de notar, ainda, que a Constituição da República de 1988 nada fizera contra a consolidação da militarização da área de segurança; ao contrário, reproduziu, no artigo 142, redação que torna as Forças Armadas “garantidoras da lei e da ordem”6.
Não apenas a estrutura policial militarizada, mas também o atual desenho institucional das Forças Armadas, constituem-se de espectros à sombra dos quais é possível compreender a genealogia profunda da violência sistêmica relatada nos Informes da Anistia Internacional – problemas admitidos e encampados como objetivos do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (BRASIL, 2009, p. 23). Apesar disso, ainda que registrada a criação e a atuação da Comissão Nacional da Verdade, nos Informe de 2012 e 2013, o acompanhamento do tema pela Anistia Internacional entre os anos de 2010 e 2013 resultou em constatações sucessivas de atraso do Estado brasileiro no contexto regional em relação ao combate a uma cultura de impunidade por violações do passado (ANISTIA INTERNACIONAL, 2010, p. 114; 2011, p. 116; 2012, p. 109-110 ; 2013, p. 52).7
Durante a ditadura militar, a repressão, a tortura e o assassinato sistemático de opositores constituirão, ao longo de algumas décadas, os paradigmas de exercício do controle social e da repressão estatais contra as insurreições da luta armada revolucionária no campo político (NEGRI; COCCO, 2005, p. 103). Aparelho repressivo que, após a transição ao regime democrático, não será desmontado, não sofrerá purgas, tampouco será reestruturado no Brasil. Pelo contrário, em pleno funcionamento – como demonstram os dados extraídos dos relatórios em matéria de direitos humanos –, o aparato de violência legal permanece atrelado a algumas estruturas herdadas do regime precedente, o que poderia explicar, ao menos em parte, a escalada da violência discursivamente naturalizada como “endêmica” no Brasil e no restante do continente latino-americano após o período ditatorial (PINHEIRO,2002, p. 240). Especificamente, essas formas institucionais de violência encontram-se estruturadas sobre o rapport Estado-cidadão que se desenvolve em culturas políticas autoritárias marcadas pelo desrespeito aos direitos humanos e pela reprodução constante da lógica da impunidade.
Antony W. Pereira não deixou de assinalar “a sobrevivência do funcionamento das instituições jurídicas estatais anteriores dentro do quadro normativo ditatorial” (PINHEIRO, 2010, p. 09). Durante a ditadura militar brasileira, registrou-se um alto grau de colaboração entre juristas e magistrados de todos os níveis funcionais, chegando mesmo a uma espécie de consenso civil-militar no seio das elites burocráticas que forneciam os contornos institucionais do sistema de justiça militar (PEREIRA, 2010, p. 41). Eis o que explicaria, segundo Pereira, o pequeno número de cassações de magistrados no período de exceção, a ausência de purgações quando do processo de redemocratização brasileira e a manutenção hegemônica de um sistema de legalidade autoritária ainda hoje reproduzido e, segundo Paulo Sérgio Pinheiro (2010, p. 12-13), experimentado pelos pobres e pelos “socialmente marginalizados, aos quais o acesso à justiça resolve-se no acesso à sua faceta repressiva”.
Fundindo-se elites militares e judiciárias, teria sido possível constituir um sistema jurídico híbrido de justiça militar, o que acarretou uma intensa judicialização da repressão e, ao mesmo tempo, preservou um alto grau de consenso sobre uma suposta benevolência das instituições militares e judiciárias. Os baixos graus de violência letal teriam colaborado para a legitimação de um poder por meio do direito (2010, p. 283), permitindo a manutenção do consenso e a desnecessidade de substituir a legitimidade institucional pela violência.
A sobrevivência de legados autoritários que atravessaram certo bloco histórico dos países do Cone Sul teria resistido às transições institucionais; não houve, por exemplo, expurgos no Poder Judiciário brasileiro. A transição conservadora brasileira visou, antes, a restabelecer o status quo ante, de modo que, até o presente, militares e membros do Poder Judiciário continuam a ser vistos como grupos “altamente isolados e privilegiados” nos cenários político e institucional (PEREIRA, 2010, p. 243). Os consensos fortemente arraigados nessas instituições embaraçam a possibilidade de reformas, baseando-se na ficção denunciada por Antony W. Pereira de que os tribunais militares agiam secundum legem.
Reconhecendo que “assim como a tortura, diversas práticas e estruturas permanecem como elementos-chave da cena nacional”, o terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, de 2009, prevê, entre suas diretrizes, a supressão “de normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem compromissos internacionais e os preceitos de Direitos Humanos” (BRASIL, 2009, p. 25). Entre esses diplomas normativos, estariam as ainda vigentes Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/1983) os códigos penais e processuais penais militares, bem como a Lei de Organização da Justiça Militar, que remontam ao período autoritário (MEZAROBBA, 2003, p. 09) e, atualmente, mantêm vigente nas instituições de caserna uma ideologia jurídico-política incompatível com o sistema constitucional contemporâneo. Além disso, uma série de diplomas legais que disciplinam as atuais estruturas tributária, administrativa e financeira do país remontam ao período de exceção. Entre eles, o Código Tributário Nacional, de 1966; a disciplina normativa do Sistema Financeiro Nacional (Lei n. 4595/64)8, o Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/80), que nega direitos políticos aos estrangeiros residentes no país, as leis relativas à reforma agrária (que jamais foi plenamente realizada), sem contar a própria Lei de Anistia, que não foi “ampla, geral e irrestrita”, como reivindicavam os movimentos sociais e, de quebra, anistiou criminalmente os violadores de direitos humanos que se serviram da estrutura do Estado pra perpetrar crimes.
Embora o PNDH-III preveja “a revisão de propostas legislativas envolvendo retrocessos na garantia dos Direitos Humanos em geral e do direito à memória e à verdade”, independentemente de lapso temporal, a revogação de leis de períodos autoritários fica, em princípio, limitada ao período compreendido entre 1964-1985. A medida não abrangeria, portanto, o Decreto-Lei n. 4.657/1942, da lavra de Getúlio Vargas, que, também fruto de um período político autoritário, ainda regra temas importantes em relação à aplicação e à interpretação do direito brasileiro. Entre eles, a vigência das leis – ponto em que foi relativamente derrogado pela Lei Complementar n. 95/98 –, a aplicação do direito e o raciocínio jurídico nas decisões judiciais – ponto em que o Decreto restringe o uso de recursos hermenêuticos simples à existência de lacuna no ordenamento – e as normas referentes ao Direito Internacional Privado. Em aceno contrário à sua ab-rogação, o antigo Decreto-Lei, recepcionado pela Constituição da República de 1988 como lei em sentido formal, foi recentemente rebatizado de “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro”, pela Lei Federal n. 12.367/2010.
O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) também previu o incremento do reconhecimento do statusconstitucional de instrumentos internacionais de Direitos Humanos, recomendando-se ratificar o segundo protocolo facultativo do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, visando à abolição da pena de morte (1989), a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (1968), adaptando o ordenamento jurídico interno pela promulgação de lei expressa fixando a imprescritibilidade dos delitos, bem como a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados (2006). Por fim, denota-se especial atenção para com o monitoramento da tramitação de processos judiciais que envolvam graves violações de direitos humanos praticados no período entre 18 e setembro de 1946 e a data da promulgação da Constituição da República de 1988.
O que o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) consolida não deixa de constituir um importante passo em direção ao desmonte de alguns aparatos autoritários; no entanto, verifica-se um fetiche pela dimensão da normatividade que, apesar de relevante, acaba por manter intocadas as estruturas administrativas lato sensu e judiciárias que poderiam continuar a interpretar algumas leis da mais recente ditadura segundo a lógica jurídica preconizada pelos horizontes hermenêuticos decretados pelo Estado Novo.
Sob o ponto de vista específico do desmonte dos aparatos administrativos e judiciais do regime prévio, o PNDH-III – superestimado e abominado por advogados como Ives Gandra Martins como uma deliberada tentativa de golpe de Estado – não passa de um instrumento de manutenção do status quo ao passo em que, embora programe a ratificação de relevantes normativas de Direito Internacional dos Direitos Humanos, em nada altera no regime estrutural das instituições burocráticas que, relativamente à efetividade daquelas normas e das tutelas por elas exigidas, continuarão a ser as responsáveis por implementá-las.
Contudo, o trabalho de identificação e cartografia dos pontos institucionais notáveis que devem ser objeto de reformas, purgas e reestruturações não pode ser levado a cabo sem um trabalho da memória, não raro coextensivo com a função diagnóstica desempenhada pelas Comissões de Verdade (CARRILO, 2009b, p. 39). Segundo Paul Van Zyl (2009a, p. 36-37), as Comissões auxiliariam a dar ímpeto às transformações institucionais, permitindo o conhecimento e o rompimento com práticas do passado, bem como identificando em seu relatório final as instituições e órgãos perpetradores de graves violações dos direitos humanos, de modo a viabilizar mais consistentes medidas de reparação material e simbólica, assim como as reformas institucionais e medidas legais, administrativas e institucionais suficientes para evitar a reemergência dos crimes do passado.
Nesse sentido, a memória e a verdade – processos que tomamos como equivalentes, porque não os dissociamos de uma efetiva produção de transição – insinuam-se como os pressupostos da justiça, sob suas múltiplas formas, e das reformas institucionais, o que permite entrever que, no seio do direito de transição, pode-se identificar uma interface entre memória e justiça, mas também entre memória e instituições em transição. É o que atesta o Relatório Anual do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para os Direitos Humanos (§ 4) ao reconhecer que “arquivos e arquivistas desempenham um papel central para reforçar os direitos humanos”.9 No mesmo sentido, o Segundo Relatório Nacional do Estado Brasileiro apresentado no mecanismo de revisão periódica universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, de 2012 (§ 123), revelou compreender “que o trabalho de resgatar o passado é imprescindível para a superação de violências e impunidades históricas [...]”.10
Mesmo as políticas de arquivos – considerados tanto em suas dimensões pessoais como oficiais – estão necessariamente implicadas nessa zona de mútuo contágio entre memória e justiça, na medida em que o testemunho seja colocado a serviço das instituições e da construção pública e democrática da verdade. No interior dessa dimensão liminar que é o direito de transição – direito constitutivo, ou direito entre –, revela-se o sentido da afirmativa de Cecília MacDowell dos Santos (2009, p. 472), para quem “O testemunho e a memória estão comumente a serviço das instituições do direito na busca da verdade e da justiça. Mas a justiça também está ao serviço da memória”.
*
É no seio mesmo desses apelos por memória e justiça em relação ao passado que voltamos a nos encontrar com Cláudia e reconhecer que seu corpo arrastado e inerme não é a metonímia que nos faz rememorar as centenas de corpos torturados, violados, mortos e desaparecidos. Como os corpos dos torturados, dos mortos e dos sobreviventes, seu corpo carregava uma história de resistência e, também, um nome. E, hoje, quando temos a oportunidade de enxergar o farsesco e tênue fio vermelho que ligam os corpos dos torturados, mortos e desaparecidos, de ontem e de hoje, é preciso estar à altura de reconhecer o que estes nomes significam. É preciso dizê-lo sem temor, e jamais como signo de nossa impotência, mas da consciência de nossa tarefa política por vir: a ditadura militar brasileira matou Cláudia Silva Ferreira 50 anos depois.
Murilo Duarte é professor de filosofia política no Direito/UEPG, doutor (USP) e mestre (UFSC) em filosofia do Direito, bloga no Navalha de Dali: <murilocorrea.blogspot.com>.
Texto originalmente publicado no site da Rede Universidade Nômade (UniNômade), para o dossiê 50 anos do Golpe. Endereço: <http://uninomade.net/tenda/cinquenta-anos-depois/>
Este texto participa da IX Blogagem Coletiva do Desarquivando o Brasil. Link: <http://desarquivandobr.wordpress.com/2014/03/28/ix-blogagem-coletiva-desarquivandobr-50anosdogolpe/>


NOTAS
[1] Comunicação apresentada no evento “Memória e resistência: 50 anos de golpe no Brasil”, no painel “Memória, cultura e história da resistência ao regime militar no Brasil”, promovido pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, em 27 de março de 2014.
[3] G1. Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html>. Consultado em 25 de março de 2014.
[4] Original: “(…) Brazil experienced a greater decline in its human rights practices than any other transitional country in the region”
[5] Cf., a esse respeito, (ANISTIA INTERNACIONAL, 2010, p. 115-117), (Idem, 2011, p. 114-116), (Idem, 2012, p. 111-113) e (Idem, 2013, p. 53-55). Todos os documentos citados estão disponíveis em língua portuguesa em <http://www.amnesty.org/>. Acesso em: 31.mai.2013.
[6] Zaverucha (2010, p. 58) imagina duas hipóteses a fim de demonstrar de que maneira o artigo 142 reinscreve uma forma da exceção na Constituição da República de 1988: “O artigo 137 da Constituição de 1988 refere se à situação de Estado de sítio: típico caso em que lei e ordem estão em perigo. De acordo com o referido artigo, o presidente necessita de autorização do Congresso para declarar o Estado de sítio. Vamos supor que o Congresso não creia que a lei e a ordem estão ameaçadas, então o presidente não poderá pedir a intervenção militar. Contudo, o presidente, ante pressão militar, pode circundar o Congresso invocando o artigo 142 e, a partir dele, solicitar que os militares restabeleçam a lei e a ordem.”
[7] O Informe 2013 expressou preocupação com os efeitos da Lei de Anistia brasileira como obstáculos à responsabilização de violadores de direitos humanos, consignando que a posição do Estado brasileiro instala-se na contramão da decisão do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia): “[...]persistiram os temores sobre a capacidade do Brasil enfrentar a impunidade por crimes contra a humanidade enquanto a Lei da Anistia de 1979 estiver em vigor. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que a Lei da Anistia brasileira não tinha validade jurídica” (ANISTIA INTERNACIONAL, 2013, p. 52).
[8] João Fellet. 29 anos após democratização, leis da ditadura seguem em vigor. BBC Brasil, Online. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/03/140322_leis_ditadura_mdb_jf.shtml>. Consulta em 26 de março de 2014.
[9] ANNUAL REPORT OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS. Right to the truth: report of the Office of the High Commissioner for Human Rights (2009). Disponível em: <http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/12session/A-HRC-12-19.pdf>. Consultado em 13 mai. 2013.
[10] ORGANIZAÇAO DAS NAÇÕES UNIDAS. Segundo Relatório Nacional do Estado Brasileiro apresentado no mecanismo de revisão periódica universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (2012). Disponível em: <http://www.sedh.gov.br/cooperacao/revisao-periodica-universal/Relatorio%20Nacional_RPU_Brasil_port_VERSaO_FINAL.pdf> Consultado em 13 mai. 2013.