Notas sobre a revolta profunda dos corpos

10 junho, 2013



A liberdade dos homens não é jamais assegurada pelas instituições ou leis que pretendem garanti-la. É por esta razão que quase todas as leis e instituições podem ser subvertidas. Não porque sejam ambíguas, mas simplesmente porque liberdade é aquilo que deve ser praticado.
 Michel Foucault.


            O que os protestos pelo fim das tarifas no transporte público, pelos direitos humanos (do Levante Popular da Juventude às Marchas contra Feliciano), pelos direitos reprodutivos das mulheres, pela liberação sexual e de gênero, dos professores - pela educação e por melhores condições de trabalho -, ou pela legalização da maconha, para ficar só com alguns exemplos, revelam que é urgente distinguir o tedioso conceito de revolução da revolta profunda de todos os corpos. Nada mais de confundir revolução com revolta, conceitos e práxis que jamais coincidem. Embora já esteja nas ruas desde Seattle, o manifesto político do século XXI ainda está por ser escrito, e ele será algo como uma fenomenologia da revolta. Uma fenomenologia da revolta como ontologia da liberdade. Mas, antes de escrever, às ruas.
         Lançar os corpos na rua e gritar "3,20 é roubo!", ou "Ilegal deveria ser essa sua cabeça conservadora", é o gesto que desloca a cisão legalidades/ilegalidades que funda as formas jurídicas consolidadas. Toda revolta é a recusa profunda, afetiva, vital dessa partição do lícito e do ilícito. Por isso, ela margeia estrategicamente o ilícito, vaga em seus limiares indecisos e excepcionais. A mídia trata o borderline do (i)lícito como crime a priori. Por sua vez, Haddad defende a ação violenta da polícia e aconselha os manifestantes a renunciarem à violência como condição do diálogo - violência a que o Estado jamais renuncia. Por isso, a atitude de Haddad é cínica. É a polícia e o Estado que devem renunciar à violência e à repressão como condição do diálogo. Se a violência pode ser exercida pelo Estado, seu titular ainda é a massa indecisa, inconsciente e confusa que o Estado tenta territorializar no conceito de Povo. Por isso, poupemo-nos da sacralização da violência; nada mais de cultos ao Estado de Direito, e nada mais de sujeição às formas jurídicas que "recobrem o grande mapa das ilegalidades". A gramática da defesa dos direitos também tem seu limite, e os direitos derivam da forma pura e vazia da lei que se trata de questionar.
         Se a verdade profunda dos corpos é a de serem profundamente anarquistas - e de não cessarem de sê-lo sob todas as camadas de ideologia -, o que a revolta profunda dos corpos produz é uma inequação que joga o caso contra a lei; a singularidade concreta contra o universal abstrato. Rebelião do caso contra as ilegalidades que a lei tornou convenção e hábito disciplinar. O Movimento pelo Passe Livre está se batendo precisamente contra esse limiar em que a lei formaliza e cobre o mapa das ilegalidades - a lei, esse efeito do poder que jamais escapou a Foucault. Então, não o condene só porque você prefere reclamar (impotentemente) da corrupção assistindo ao telejornal; não o censure só porque você não tem coragem de ir às ruas e enfrentar a porrada deste Estado protofascista que é São Paulo - mas também todos os outros - armado, no mais das vezes, só da coragem de um corpo anarquista que reivindica sua potência contra o poder.

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